[this is the transcription of an interview that I gave to Daniela Fernandes — Para o Valor.Globo.com published 26/03/2021]

O filósofo francês Pierre Lévy, de 64 anos, começou a pesquisar as implicações culturais da comunicação digital há 30 anos, em uma época em que a web (o famoso www) ainda nem existia e apenas 1% da população estava conectada. Naquele momento, havia uma utopia do conhecimento sem fronteiras propiciado pelo ciberespaço, em que a informação sem limites e acessível a todos permitiria o progresso da humanidade. Lévy criou o conceito de “inteligência coletiva” – tema de um de seus livros publicado nos anos 1990 na França -, um princípio segundo o qual os conhecimentos individuais são somados e compartilhados livremente em escala planetária graças à internet.

Pesquisador da Universidade de Montreal na área de “humanidade digital” e ex-professor da Universidade de Ottawa, no Canadá, Lévy prevê criar uma empresa de inteligência artificial que visa melhorar a categorização de dados. O filósofo esteve no Brasil em 2016 e 2019 para participar do Fronteiras do Pensamento, que neste ano ocorre em formato digital. [Encurtei a introdução do jornalista. PL] A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Valor:

Pierre Lévy in 2021

Valor: Nos anos 1990, quando o senhor publicou o livro “Inteligência Coletiva”, a comunicação digital era vista como uma ferramenta que permitiria a igualdade à informação e o progresso da humanidade. Mas, na prática, há também desinformação e polarização da sociedade. Como o senhor vê a evolução da internet?

Pierre Lévy: A inteligência coletiva facilitou e melhorou a comunicação entre as pessoas. Temos essa ferramenta extraordinária que é o Wikipedia, um belo exemplo de inteligência coletiva. O movimento do software livre é outro exemplo. Vários programas para computador criados pela rede GitHub, que reúne engenheiros de informática, são públicos e foram realizados de forma colaborativa. No mundo do trabalho e das associações, as mídias sociais são utilizadas de maneira eficiente. Há um real desenvolvimento da inteligência coletiva, da colaboração, da reflexão conjunta. Constrói-se uma memória comum em uma escala que era impossível antes da internet. Com cerca de 60% da população mundial hoje conectada, temos todas as qualidades, mas também os defeitos da humanidade que se refletem na inteligência coletiva: mentiras, incitação à violência, fanatismo e pornografia. Temos um espelho da humanidade. Tudo é lá. A internet nos reenvia uma outra imagem de quem somos.

Valor: Jeff Orlowski, diretor do documentário da Netflix “O Dilema das Redes”, diz que as plataformas de mídia social dispõem hoje de um poder enorme em relação à maneira como bilhões de pessoas vivem suas vidas. O filme mostra que as redes estão manipulando os usuários e afetando a democracia. Qual é o impacto disso?

Lévy: As gigantes da web, como Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft, adquiriram um poder extraordinário, algo que eu não havia pensado anos atrás. Elas têm um monopólio sobre a memória mundial e registram quase tudo que acontece na internet. Além de serem as companhias mais ricas do mundo, faz tempo que elas ultrapassaram as empresas do setor de energia, têm todos os dados, as tecnologias mais potentes e oferecem as infraestruturas necessárias para a comunicação entre as pessoas. Elas estão desenhando uma nova forma de poder econômico, o que é evidente, mas sobretudo político. Muitas funções sociais e políticas, que são funções tradicionais dos Estados-nação, estão passando para essas companhias. Na minha avaliação, é uma nova forma de Estado, que eu denomino Estado-plataforma.

Valor: Como o Estado-plataforma afeta a sociedade?

Lévy: Entre todas as funções de um Estado, o controle do espaço público é provavelmente a que mais nos afeta diretamente. Quando fazemos uma pesquisa no Google, é a empresa quem decide o que aparece nas primeiras páginas da busca. Ninguém vai olhar a centésima página. Essas companhias podem fazer censura. Não no sentido de proibir totalmente, mas de maneira que o que aparece para os internautas é o que a plataforma decidiu. Twitter ou Facebook, particularmente implicados nessa noção de conversa pública, aplicam agora claramente a censura. É um poder que vai além do econômico. O Facebook, por exemplo, passou a verificar identidades. Google Maps vai funcionar como cadastro para pequenos países que não têm muitos recursos, administrando a cartografia do território. Amazon vai começar a certificar as transações financeiras de maneira mais eficiente do que os governos. E há o desenvolvimento das famosas criptomoedas (como os bitcoins). Facebook e outras companhias da web têm projetos de criar isso. Amazon e Facebook estão entrando na corrida espacial e devem lançar satélites para facilitar o acesso à internet. São essas companhias que terão a infraestrutura física de tudo isso.

Valor: É uma nova forma de poder político, em termos históricos?

Lévy: O Estado-nação surgiu no século XVI na Europa, com uma unidade cultural, uma língua comum, um controle da economia. Essa forma de organização econômica e política permitiu a países do continente de dominar o mundo. Mas o que vejo agora, em termos de desenvolvimento histórico, é uma nova forma política que se baseia na potência da memória e do cálculo dessas companhias da nuvem. Não há nenhuma burocracia governamental que seja tão eficiente como a potência de memória e de cálculo da Amazon, da Apple ou do Google.

Valor: O Estado-plataforma introduz, na sua avaliação, uma forma de domínio ideológico radicalmente novo graças às tecnologias da comunicação?

Lévy: Podemos voltar muito no tempo sobre as técnicas de dominação política. Na época da cultura oral, havia tribos e reinos, mas não existia burocracia. As primeiras civilizações, baseadas em palácios-templos, inauguram as primeiras formas de Estado. Depois vieram os impérios, que impuseram uma forma de domínio multinacional, multilinguístico, sem homogeneidade cultural. O Estado-nação introduziu um novo tipo de domínio político que implica uniformidade cultural por meio da educação e do serviço militar obrigatório. Com o surgimento das grandes plataformas digitais, como Google, o que aparece não é uma nação, e sim o princípio de um Estado.

Valor: Isso não é uma ameaça à democracia?

Lévy: Não se nos desligarmos afetivamente dessas grandes plataformas digitais. Há uma dimensão de vício no uso desses serviços. Quando alguém utiliza uma mídia social, espera sempre um retorno positivo. Há o receio de não ficar a par do que está acontecendo e de se sentir excluído. São sentimentos humanos, mas quando transpostos a esse espaço virtual, sobretudo em escala planetária, criam uma dependência. Esses novos “Estados” têm tentáculos no nosso cérebro porque somos vítimas de uma forma de vício. Cada vez que temos um “like” é como uma secreção de dopamina. Se não conseguirmos nos desligar dessa dependência, não vejo meios de se opor aos Estados-plataforma. Atualmente, até mesmo os governos se servem dessas empresas.

Valor: Os serviços digitais estão totalmente integrados ao dia a dia das pessoas. Continuaremos ameaçados de sofrer manipulação com a ascensão dos Estados-plataforma?

Lévy: Não mais do que antes. Sempre houve um domínio das elites políticas e econômicas sobre o restante da população. Mas não era nessa escala geográfica. Pessoalmente, como filósofo humanista que reflete sobre a história, penso que o melhor a ser feito é desenvolver a educação, o espírito crítico e a leitura para manter um certo distanciamento em relação às exigências da política, da economia e dos conflitos ideológicos.

Valor: Qual futuro os Estados-plataforma preparam à sociedade?

Lévy: Não tenho a pretensão de prever algo. Os Estados tradicionais estão se fundindo com as plataformas digitais por uma razão simples: elas têm meios bem mais potentes que os Estados tradicionais. Em relação às políticas de defesa nacional, os Estados precisam dessas companhias, por exemplo, para gerenciar os dados de campos de batalhas. Nas questões de segurança, as tecnologias da informação são utilizadas pelos serviços de inteligência. As políticas de saúde pública integram igualmente um imperativo de gestão de dados em massa de dossiês médicos. Captores colocados em pacientes coletam dados enviados às nuvens. A segurança, a saúde e a economia só podem, de agora em diante, ser administrados por meios ultrapoderosos propiciados pelas tecnologias da informação. Há também a opinião das pessoas, que pode ser controlada por meios sutis. É a direção na qual vamos. Já estamos nisso. O controle do espírito não é algo novo. Esquecemos que não faz muito
tempo que muitos eram influenciadas pela religião. O que é novo, agora, é o método.

Valor: As redes sociais favoreceram a ultrapolarização política da sociedade em vários países. Qual pode ser o impacto da influência dessas plataformas nas eleições presidenciais americanas no mês que vem?

Lévy: Já faz cerca de dez anos que o marketing personalizado é utilizado por todos os partidos políticos em países relativamente ricos para influenciar o voto das pessoas. Com as mídias sociais, surgiu a possibilidade de cálculos estatísticos direcionados às pessoas, com o envio de mensagens diferentes segundo a categoria social. Isso foi feito pelos republicanos e pelos democratas nos Estados Unidos e em países como o Canadá e a França. O escândalo da Cambridge Analytica, empresa de análise, que utilizou o vazamento de dados pessoais de milhões de usuários do Facebook para influenciar o voto das pessoas (nas eleições presidenciais americanas de 2016), foi algo marginal. O que é novo é a comunicação política baseada nos dados. A então candidata Hillary Clinton usou uma segmentação por sexo, idade e cor, enquanto a campanha de Trump aplicou os métodos da
Cambridge Analytica, baseados em uma categorização psicológica, que foi mais eficaz do que a categorização social. Mas, agora, todo mundo utiliza os dados em massa e as tecnologias digitais para influenciar o voto dos cidadãos.

Valor: O Facebook vem reforçando suas regras às vésperas da eleição americana: anunciou que suspenderá toda publicidade política após a votação e proibiu as páginas ligadas à teoria conspiratória QAnon, classificado como ameaça terrorista pelo FBI. A violência dos ataques nas mídias sociais durante a campanha presidencial pode levar a conflitos nas ruas?

Lévy: Todos têm medo de uma guerra civil nos Estados Unidos. A ala esquerda do Partido Democrata fez declarações que iam no mesmo sentido das feitas pelo presidente Donald Trump. Se o republicano ganhar, a eleição seria ilegítima ou haveria fraude. Há dos dois lados a ameaça de não aceitar o resultado da votação ou de contestá-lo. Tenho confiança de que os americanos não vão entrar em uma guerra civil. Espero não estar enganado, mas tudo é possível. Já houve uma guerra civil no século XIX no país, e na época não havia redes sociais.

Valor: A internet impulsionou a disseminação de “fake news” e de teorias da conspiração, como vemos na pandemia de covid-19. O senhor critica o fato de que as redes sociais estão apagando publicações, inclusive de presidentes como Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Não deve haver limites para a liberdade de expressão, mesmo que isso represente desinformação?

Lévy: As mentiras, as manipulações e os exageros não começaram com a internet. O desenvolvimento da web coincidiu com o da educação. Em países pobres, é possível ter acesso a uma documentação pedagógica gratuita graças à internet. Desde o surgimento da internet, a humanidade continuou a evoluir. O desenvolvimento das tecnologias da informação acompanhou o desenvolvimento humano. Todos que dizem coisas contrárias à Organização Mundial da Saúde foram deletados do YouTube, mesmo que sejam médicos.

Valor: O senhor diz ter constatado que as teorias da conspiração são sempre as teses do outro que possui uma visão ideológica diferente. Se cada um pensar que é o dono da verdade, então quem teria legitimidade para arbitrar a respeito?

Lévy: Quem conhece a verdade? O astrônomo Galileu Galilei (1564-1642), que transformou radicalmente o conhecimento sobre o universo, era o único que dizia algo verdadeiro, mas foram necessários vários séculos para que todos concordassem com ele. Quem deve decidir se o que o outro diz é verdadeiro? As plataformas praticam abertamente a censura. Algumas coisas são censuradas e outras menos, como é o caso do antissemitismo. Acho que duas coisas deveriam ser apagadas nas mídias sociais: a incitação ao homicídio e o que é proibido pelas leis do país. Mas nem sempre a incitação ao homicídio é excluída.

Valor: Podemos dizer que a internet é tanto um instrumento de inteligência coletiva quanto de besteira coletiva?

Lévy: Ouço isso o tempo todo. As pessoas dizem que não se vê inteligência coletiva nas redes sociais, e sim besteira coletiva. Na realidade, a inteligência coletiva não é o contrário da besteira coletiva. Eu me refiro à capacidade das pessoas de compartilhar informações, de refletir e se coordenar. A comunidade científica é uma grande instituição de inteligência coletiva. A memória, a coordenação e a reflexão podem ser ampliadas. Isso não significa que não cometemos erros. Apesar de todos os efeitos negativos da utilização da internet, sua contribuição à inteligência coletiva permanece válida.